O
STF abriu 2012 declarando a constitucionalidade da Lei Complementar 135/2010,
mais conhecida como Lei da Ficha Limpa. Dentre várias disposições, a lei
estabelece que são inelegíveis aqueles que foram condenados por órgão colegiado
pela prática de alguns crimes previstos na norma, como aqueles contra a
fé pública, o patrimônio publico ou privado, o sistema financeiro, e outros.
Assim,
a norma prevê a inelegibilidade
daquele que foi considerado culpado em julgamento proferido por mais de uma
pessoa, mesmo que tal decisão não seja definitiva.
Pois
bem, todo o debate no STF sobre a legitimidade da Lei da Ficha Limpa girou em
torno de sua (in)compatibilidade com o princípio da presunção da inocência — pelo qual “ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”
(CF, artigo 5º, LVII). Ou seja, discutiu-se a constitucionalidade da lei
determinar a inelegibilidade
de agentes políticos com base em condenação ainda não transitada em julgado, não
definitiva, passível de recurso, presumindo-se a culpa e não a inocência nestes
casos.
O
STF entendeu que a lei é constitucional, e sustentou sua decisão no artigo 14,
parágrafo 9º da Constituição, que autoriza o legislador a criar hipóteses de inelegibilidade
para proteger a probidade
administrativa e a moralidade para o exercício do mandato. Assim,
como a própria Constituição permite que o legislador — através de lei complementar —
crie hipóteses de inelegibilidade com o objetivo expresso de proteger a moralidade,
inclusive levando em conta a vida pregressa do candidato, a Lei da Ficha
limpa seria constitucional.
Como
todo o respeito e admiração aos que pensam dessa forma, não parece a
interpretação mais adequada.
A
Constituição certamente autoriza que o legislador crie situações de
inelegibilidade, em especial quando constatado que o indivíduo agiu de maneira
ímproba, abusou de poder econômico ou cometeu comportamentos semelhantes.
O
que se discute, no entanto, não é qual comportamento atrai a inelegibilidade, mas como se constata
a existência desse comportamento. Não se nega que o ímprobo, o criminoso, o
moralmente combalido deva ser considerado inelegível. A questão, no entanto, é
qual o requisito para considerá-lo ímprobo, criminoso ou moralmente combalido.
Quais os procedimentos para atestar a existência destas qualidades que atraem a
inelegibilidade.
E
aqui voltamos à Constituição. A Carta adota — como já apontado — o princípio da
presunção de inocência, ou da
não culpabilidade (que alguns insistem em distinguir quando os
termos têm o mesmo sentido semântico), vedando a formação de juízo de culpa até
o trânsito em julgado da sentença condenatória, ou seja, até que a última
palavra judicial seja proferida o cidadão é considerado inocente. Em suma, o
criminoso ou o ímprobo é inelegível, mas ele só será criminoso ou ímprobo
quando for julgado definitivamente.
A
presunção de inocência é uma garantia do cidadão. Tida por alguns como norma de
impunidade, de ineficácia, de salvaguarda para corruptos, a presunção é o
sustentáculo de um sistema seguro e estável, que evita a antecipação de efeitos
— às vezes irreparáveis — de uma decisão que pode ser revista e considerada
injusta posteriormente.
Assim,
há um texto constitucional, uma Carta Magna em vigor, que — mais uma vez —
aponta que a culpa só existe depois de sentença definitiva. Só há culpa após a decisão
final. Antes disso o indivíduo é inocente, tenha sido julgado por quem quer que
seja.
No
entanto, o STF entendeu que a Lei da Ficha Limpa não afeta a presunção de
inocência porque não impõe uma pena, apenas cria uma condição de elegibilidade,
e que, por isso, não precisa observar o princípio constitucional. Para a Corte,
ao lado da nacionalidade
brasileira, de ser alfabetizado, e de outros requisitos para se
candidatar a cargos eletivos, foi criada a condição de não ter sido condenado por
órgão colegiado pelos crimes indicados na lei.
Ainda
que tal raciocínio fosse correto, há uma diferença entre a condição de elegibilidade
criada pela Lei da Ficha Limpa e as demais: a primeira se fundamenta em um juízo anterior de culpa,
ao contrário das últimas. Ser brasileiro, alistado, ter domicílio na circunscrição,
filiado, ter idade mínima, ou ser alfabetizado, por exemplo, são
condições de elegibilidade cuja existência não se relaciona com qualquer comportamento anterior
sobre o qual recaia uma reprovação. Já a inexistência de condenação colegiada tem íntima
relação com o reconhecimento
de culpa pela prática de um crime.
Por
isso, ainda que as condições da Ficha Limpa não sejam penas, e sim condições de elegibilidade,
elas pressupõe um juízo de culpa, e tal juízo de culpa só
existe diante de sentença transitada em julgado. Seja lá qual for
o nome que se dê ao instituto jurídico em análise — pena ou condição de
elegibilidade — sua incidência exige um reconhecimento de culpa, de reprovação
de comportamento que, segundo a Constituição, não existe antes de transitada em
julgado a condenação.
Não
é demais enfatizar que, embora o texto constitucional relacione a presunção de inocência
à condenação penal,
há manifestações do próprio STF enfatizando o caráter irradiante dessa garantia
para outros juízos de
culpa (Celso de Mello, no voto na ADPF 144).
Por
isso, a Lei da Ficha Limpa estaria de acordo com a Constituição se incidisse
apenas sobre aqueles condenados definitivamente. A extensão de seus efeitos aos
casos ainda pendentes de julgamento final parece contrariar o princípio da
presunção de inocência.
Ainda
que o STF tenha superado a questão, e declarado constitucional a Lei da Ficha
Limpa, a reflexão sobre a extensão e incidência das garantias constitucionais
parece sempre necessária, ainda mais em tempos de constante demanda por sua
relativização em nome de objetivos nem sempre compatíveis com o modelo de
Estado consagrado pelo legislador constituinte.
Opinião de: Pierpaolo
Cruz Bottini advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma
do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.
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